por Laura Greenhalgh*, do Arq.Futuro
“Um dia, quando os visitantes puderem dar suas braçadas nas águas cristalinas do Spree, então saberemos que fomos vitoriosos ao implementar um projeto muito especial”. Com esta previsão começa a apresentação do Flussbad Berlin, um projeto de limpeza e revitalização do rio Spree, que corta a capital alemã, atravessando o seu centro histórico.
Vale mergulhar e ir um pouco além nessa singela projeção de futuro, a partir do que já se vê no momento: hoje, não só os idealizadores pioneiros do projeto, como a sociedade berlinense e mesmo a comunidade européia, entendem que o Flussbad (traduzindo, “banho de rio”) vai muito além de simplesmente permitir ao cidadão voltar a nadar no rio.
Com apoio do governo de Angela Merkel e da administração pública de Berlim, além de recursos suplementares vindos da loteria alemã, o Flussbad vem ganhando força, adesão pública e investimentos. Até agora conta com uma linha de crédito de 4 milhões de euros.
Começou timidamente, com a movimentação cidadã pela limpeza de um canal fétido do rio Spree, bem no centro histórico. Ao longo de duas décadas, o projeto conseguiu ser ouvido e assimilado pela população: embora proponha um processo de transformação urbana de longo prazo, quer atrair moradores para uma região esvaziada, visitantes e turistas que se interessem por conhecer o passado histórico de Berlim num contexto mais amigável, além de empresas e corporações com olhos postos no futuro.
Ou seja, o lado mais retrô de Berlim poderá se converter no lugar mais moderno e descolado de uma cidade verdadeiramente global.
Para início de conversa, o Flussbad quer transformar o Canal Spree em espaço público de qualidade, articulando todo um programa de revitalizações e inovações urbanas, construído sobre três pilares: sustentabilidade, economia e participação. A área do projeto compreende uma faixa de 1,8 Km de extensão. Tecnicamente, pode-se dizer que o Flussbad prega a despoluição do rio antes que ele inicie sua travessia por Berlim. O Spree recebe cargas concentradas de regiões de mineração não muito distantes e, em particular, dos pesticidas utilizados nos campos de Brandenburgo. As coisas ficam piores quando o rio entra em Berlim, adicionando às suas águas já contaminadas a carga difusa dos detritos da cidade. O que se tem visto é que, especialmente na época das chuvas, o sistema de esgoto colapsa e as inundações avançam sobre o centro histórico — e isso pode acontecer mais de 30 vezes por ano.
“O Flussbad é o primeiro passo para mudar essa situação. Com a ajuda de um sistema de filtragem natural e a disseminação das wetlands, nosso objetivo é limpar o fluxo hídrico na porção central do Spree. Isso vai permitir que se tenha água limpa, cristalina até, para nadar numa extensão de 840 metros, bem no coração de Berlim”, garantem os organizadores do projeto. A estratégia de limpar o rio antes do início da faixa reservada para a natação é também explicada pelo hidrologista Heiko Sieker, um dos autores da proposta: “O sistema de filtragem começa a operar antes para dar conta da proliferação de bactérias e algas. As primeiras precisam ser combatidas porque são nocivas à saúde. As outras porque, embora não apresentem risco à saúde, deixam as águas com aspecto “sujo”. E o que precisamos fazer é romper a sensação repulsiva em relação ao rio”.
Pode parecer uma particularidade do projeto insistir na recuperação de um curso d´água para que ele se torne atraente aos banhistas. Este, aliás, tem sido um ponto visado pelos críticos que não aceitam a ideia de sungas e biquínis circulando em área tão tradicional de Berlim. Mas, explica-se a ênfase na balneabilidade: até os anos 20 do século passado, as elegantes casas de banho faziam parte da cultura berlinense, em sua Belle Époque. Depois o Spree foi ficando inviável. Passou a ser atacado pelos higienistas, que queriam vê-lo fechado, a área toda se degradou, veio a guerra, a cidade foi dividida pelo muro, uma arquitetura megalômana e burocrática ganhou espaço às margens do rio – todas estas etapas mostram como, em menos de um século, um lugar de vida urbana vibrante se transformou numa região sem vida, testemunha desbotada do seu passado.
O que se tem hoje é a percepção de que devolver o rio aos banhistas — que hoje insistem em se reunir em grupos de ativistas, para dar suas braçadas ainda com as águas em recuperação — talvez seja a melhor maneira de construir a irreversibilidade do projeto. Ou seja, no futuro, quando as pessoas não só puderem ocupar as margens do rio com espaços de lazer modernos e acolhedores, mas puderem de fato se lançar às suas águas, então neste ponto a despoluição será uma causa conquistada e consumada. Esse futuro se delineia já para os próximos anos.
Os irmãos Tim e Jan Edler, fundadores de uma conhecida firma de design, estão entre os pioneiros do projeto Flussbad, no fim dos anos 1990. Eles tiveram visões premonitórias do processo de gentrificação berlinense, que se iniciou logo após o fim do muro, avançando rapidamente. Começaram a contar no skyline os imensos guindastes anunciando a construção de condomínios portentosos, de gosto nem tanto, com direito até a palácio barroco na zona dos museus. Tim e Jan então apostaram na capacidade transformadora do espaço público. Berlim, que se vendia aos grupos imobiliários como “uma cidade pobre, mas sexy”, tinha de ser finalmente devolvida aos cidadãos.
Assim caminha o “Flussbad For The People”, como nomeia Michael Kimmelman, crítico de arquitetura do jornal The New York Times. Com parques, jardins, decks, anfiteatros, piscinas construídas e muita água fluvial limpa, o projeto tem tudo para vir a ser o cartão-postal de Berlim neste século. E, como destaca Kimmelman, tem o potencial inovador de um projeto como o High Line, em Nova York, “pela capacidade de criar identidade cívica”. Não à toa os moradores da cidade já adotaram o simpático urso gorducho com uma bóia pendurada no barrigão, símbolo do Flussbad. O mascote berlinense aderiu.
* Laura Greenhalgh é jornalista e diretora do Arq.Futuro.